A descoberta do Nossa Senhora do Cabo não só confirma relatos históricos, como também reacende lendas que há séculos alimentam o imaginário coletivo, Olivier Levasseur, conhecido como “The Buzzard” (O Urubu), foi um dos piratas mais temidos do Oceano Índico durante o início do século XVIII. Francês de nascimento e ex-corsário, Levasseur teria acumulado fortunas saqueando navios comerciais europeus e orientais e há quem diga que deixou pistas criptografadas sobre o paradeiro de seus tesouros em mensagens cifradas lançadas ao mar.
O documentos da época e crônicas mantidas em arquivos coloniais portugueses e franceses, o ataque ao Nossa Senhora do Cabo em 1721 foi um dos maiores golpes da carreira de Levasseur. O navio carregava não apenas riquezas comerciais, mas também pertences da Igreja Católica, enviados de Goa para Lisboa, incluindo relíquias e objetos litúrgicos de valor incalculável.
“Esta descoberta não encerra um capítulo ela abre vários. Estamos agora diante de um quebra-cabeça histórico que envolve não apenas arqueologia, mas também diplomacia, religião e a complexa relação entre impérios coloniais do século XVIII”, explica a historiadora portuguesa Mariana Corte Real, que acompanha a investigação.
Trabalho arqueológico e desafios legais
As escavações submarinas na Baía de Ambodifotatra foram iniciadas em 2009, mas ganharam tração nos últimos cinco anos, após a análise de cartas náuticas antigas, diários de bordo e mapas codificados atribuídos a marinheiros franceses. A localização exata dos destroços só foi confirmada no início deste ano, mas as operações de resgate foram mantidas em sigilo para evitar saques ou interferência.
Agora, com parte significativa dos artefatos já em processo de restauração, começa uma etapa igualmente delicada: a disputa legal e diplomática em torno da propriedade do tesouro. O governo de Madagascar, onde os destroços foram encontrados, reivindica soberania sobre os bens, enquanto Portugal, como país de origem do navio, também pleiteia a devolução parcial dos artefatos. Há ainda possíveis reivindicações por parte da Igreja Católica, devido à natureza de alguns objetos religiosos recuperados.
Especialistas do Conselho Internacional de Museus (ICOM) e da UNESCO devem ser convocados para mediar a questão e garantir que a preservação histórica prevaleça sobre interesses comerciais.
Uma janela para o passado
O achado do Nossa Senhora do Cabo oferece uma rara oportunidade de mergulhar literalmente na história do comércio marítimo, da expansão colonial e da pirataria no Oceano Índico. As condições de conservação dos artefatos surpreenderam os arqueólogos, que agora trabalham para catalogar cada item e reconstruir parte da história esquecida da embarcação.
Além das barras de ouro e das joias, foram encontradas porcelanas orientais intactas, crucifixos entalhados em marfim, moedas cunhadas em Goa, manuscritos religiosos e até sinos de bronze com inscrições em latim.
“Esse tipo de descoberta tem um valor inestimável para a arqueologia e para a compreensão da complexa rede de trocas culturais e econômicas entre continentes”, destacou o arqueólogo submarino Luca Ferrini, membro da equipe de escavação.
Próximos passos
Nas próximas semanas, parte do acervo será transferido para um laboratório de conservação na França, onde passará por análises detalhadas e será preparado para futuras exposições. Há planos para a criação de uma mostra internacional intitulada “O Tesouro do Cabo: Entre Piratas e Impérios”, que poderá circular por museus da Europa, África e Ásia a partir de 2026.
Enquanto isso, estudiosos e curiosos de todo o mundo voltam seus olhos para Nosy Boraha — uma pequena ilha que, até recentemente, era conhecida apenas por suas paisagens tropicais e recifes de corais, e que agora entra para a história como o local onde o passado ressurgiu das profundezas.