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‎Angola em chamas: Entre o grito sufocado e a resposta de força

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EDITORIAL | O SECRETO

‎Há dias em que a história de um país se escreve com mais dor do que palavras. Esta semana, Luanda foi palco de um desses capítulos, um episódio que escancarou as fissuras que atravessam a sociedade angolana e expôs tanto a vulnerabilidade do Estado quanto a fragilidade do pacto social entre o povo e os poderes instituídos.

‎O que começou como uma greve de taxistas,  uma classe que enfrenta desafios reais e crônicos, rapidamente degenerou em actos de violência e vandalismo. Lojas saqueadas, património público e privado destruído, cidadãos coagidos a não circular, vidas perdidas. A capital foi submetida a uma espécie de cerco urbano, onde o medo e a confusão tomaram o lugar do diálogo e da razão.

‎O Presidente João Lourenço reagiu com dureza e clareza. E não poderia ser diferente. A defesa da ordem pública é um imperativo do Estado e a destruição premeditada de bens, assim como a intimidação de inocentes, são actos criminosos que merecem punição exemplar. No entanto, seria um erro grave e perigoso,  interpretar o caos apenas como uma ação isolada de “organizações anti-patrióticas manipuladas nas redes sociais”. O problema é mais profundo. E mais interno.

‎Raiva, não razão: O sintoma de uma juventude sem futuro

‎A juventude angolana está inquieta. Muitos jovens cresceram ouvindo que Angola é um país rico, com imensos recursos naturais e potencial de desenvolvimento. Mas o que encontram é uma realidade marcada por desemprego, informalidade, precariedade e oportunidades escassas. As redes sociais, sim, amplificam o descontentamento, mas não o criam. O combustível está acumulado há anos; a faísca pode vir de qualquer lado.

‎Por isso, antes de condenar a juventude como massa manipulada, o Estado precisa escutá-la. Não com promessas genéricas nem com planos de médio prazo, mas com acções concretas, imediatas e sustentáveis. O investimento em grandes obras é importante e inegável, mas ele precisa traduzir-se em qualidade de vida no presente. Não basta que as barragens avancem se as torneiras das casas continuam secas. Não basta formar professores se os salários são insuficientes para manter vocações vivas.

‎Autoridade ou empatia: o papel do Estado em tempos de crise

‎A resposta do Governo à crise foi institucionalmente correcta, restabelecer a ordem, procteger o património, identificar os responsáveis. No entanto, o país precisa mais do que ação policial. Precisa de uma liderança que compreenda que segurança não se faz apenas com batidas nas ruas, mas também com políticas públicas eficazes, inclusão social e diálogo real com os cidadãos.

‎Neste momento delicado, a narrativa estatal que associa toda manifestação ao caos, toda insatisfação à sabotagem, pode servir para justificar o uso da força, mas não constrói soluções duradouras. O povo, sobretudo o jovem, quer ser ouvido, não apenas controlado. Quer fazer parte da construção do futuro, e não apenas ser convocado a aceitar decisões de cima para baixo.

‎A encruzilhada: medo ou transformação?

‎Luanda esta semana nos deu um espelho do país: um retrato duro, que ninguém gosta de ver, mas que precisa ser encarado. Os acontecimentos revelam uma tensão acumulada que não pode ser ignorada. A resposta a essa tensão pode seguir dois caminhos: o do medo ou o da transformação.

‎O medo leva à repressão, à criminalizarão do protesto e à negação dos problemas. A transformação exige coragem política, capacidade de escuta e compromisso verdadeiro com as reformas estruturais que o país tanto precisa: um sistema educativo que forme e inspire, um mercado de trabalho mais justo, políticas sociais mais eficazes e uma cultura democrática onde a crítica não seja vista como traição.

A paz não é apenas ausência de guerra

‎O presidente João Lourenço lembrou, com razão, que já se passaram 23 anos desde o fim da guerra civil. No entanto, devemos reconhecer que a paz verdadeira não é apenas a ausência de conflito armado. A paz duradoura é aquela construída com justiça social, coesão nacional e oportunidades para todos.

‎Celebrar 50 anos de independência exige mais do que bandeiras nas ruas. Exige responsabilidade, autocrítica e coragem de reformar. O Executivo precisa compreender que a repressão, por si só, apenas silencia — não resolve. E a sociedade civil, por sua vez, deve rejeitar a violência, mas continuar a exigir aquilo que a Constituição promete: dignidade, direitos e futuro.

‎Para a  reconstruir o pacto social, não basta restabelecer a ordem. É preciso restaurar a confiança. Não basta punir os responsáveis. É preciso entender o que nos trouxe até aqui.

‎Angola precisa usar este momento não como justificativa para endurecer, mas como oportunidade para amadurecer. O grito nas ruas, ainda que desordenado, não pode ser ignorado. Ele diz, com brutalidade, o que muitos não têm coragem de dizer com palavras: Angola precisa ouvir seu povo e, mais do que isso, precisa cuidar dele.

‎Este é um editorial do jornal “O SECRETO”. Reflete a posição institucional do veículo sobre os factos recentes em Angola.

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