Caso expõe fragilidades na rede de protecção infantil em comunidades do interior; adolescente está internado em estado de recuperação
HUAMBO (O SECRETO) – Um homem de 58 anos foi detido na noite desta sexta-feira, 27 de Junho, na localidade de Calenga, município da Caála, acusado de manter o próprio filho, um adolescente de 14 anos, em regime de cárcere privado. O caso, revelado pela Polícia Nacional de Angola, levanta sérias preocupações sobre a negligência, violência doméstica e o silêncio social que ainda persistem em várias comunidades do país.
A detenção ocorreu após denúncias anónimas feitas por vizinhos que suspeitavam do desaparecimento prolongado da criança. Os efectivos do Comando Municipal da Polícia Nacional deslocaram-se ao local e, ao entrarem na residência da família, encontraram o menor em estado debilitado, trancado num quarto com sinais visíveis de abandono, fome e sofrimento psicológico.
“Para o bem dele”, alegaram os pais
De acordo com declarações recolhidas no local, tanto o pai, agora sob custódia policial, quanto a mãe da criança, que colaborava com a situação, alegaram que a reclusão foi motivada por questões relacionadas à “saúde mental” do adolescente.
Para os pais, o adolescente, teria apresentado comportamentos “estranhos e agressivos”, razão pela qual decidiram isolá-lo “para sua própria segurança”. No entanto, essa justificativa foi imediatamente rejeitada pelas autoridades, que consideram a prática um acto gravemente ilegal, desumano e contrário ao novo Código Penal angolano.
“Mesmo em casos que envolvem saúde mental, os pais não têm o direito de restringir a liberdade da criança sem acompanhamento médico ou autorização judicial. O que ocorreu aqui foi um crime”, declarou um oficial da polícia local.
Condições desumanas: o quarto onde a criança vivia
Testemunhas descrevem que o adolescente vivia num compartimento de poucos metros quadrados, sem ventilação, sem acesso a casa de banho, exposto a fezes e lixo acumulado. Não havia luz, nem sequer contacto visual com outros membros da família. A porta era trancada por fora, com cadeado.
De acordo com o relatório preliminar dos serviços de saúde, o menor apresentava sinais de desnutrição moderada, ansiedade severa, isolamento social prolongado e possíveis traumas psicológicos, que estão agora a ser avaliados por especialistas.
O adolescente encontra-se actualmente internado no Hospital Municipal da Caála, onde recebe cuidados médicos e psicológicos. As autoridades informaram que ele se encontra em estado estável, mas o processo de recuperação emocional deverá ser longo.
Polícia e SIC aprofundam investigação
O Serviço de Investigação Criminal (SIC) assumiu a condução do caso e trabalha para apurar com rigor todas as circunstâncias que envolveram a detenção do menor, incluindo o tempo exato em que esteve em cárcere e possíveis episódios de violência física ou maus-tratos anteriores.
O pai permanece detido e responderá pelo crime de cárcere privado, com agravante de ter como vítima uma criança, o que pode resultar numa pena de até 10 anos de prisão. A mãe, embora não tenha sido formalmente acusada até o momento, está sob vigilância e poderá ser indiciada por omissão ou conivência.
O silêncio dos vizinhos e o medo de denunciar
O caso de Calenga trouxe à tona uma realidade difícil: a cultura do silêncio e do medo ainda presente em muitas comunidades do interior angolano. Moradores da zona afirmam que sabiam do desaparecimento do adolescente, mas evitavam fazer perguntas por receio de represálias ou simplesmente por considerarem o assunto como “questão da família”.
“Achávamos que ele tinha sido enviado para Luanda. Quando ouvimos gritos em algumas noites, pensávamos que era coisa de doença”, disse uma vizinha, em condição de anonimato.
Esse comportamento social reforça a necessidade urgente de programas de sensibilização comunitária sobre direitos da criança, mecanismos de denúncia anónima e vigilância social.
Falta de políticas públicas no interior: um problema estrutural
Para especialistas em direitos humanos, este não é um caso isolado, a psicóloga e activista social Teresa Ngueve alerta que situações como esta são reflexo do abandono institucional das zonas rurais, onde há pouco ou nenhum acesso a saúde mental, educação inclusiva ou apoio social.
“Há famílias que, por ignorância ou desespero, recorrem a métodos arcaicos de contenção, por falta de acesso a diagnósticos médicos e apoio psicossocial. O Estado precisa ocupar este espaço, com programas reais de acompanhamento familiar”, afirmou.
Para o especialista, o estigma em torno de transtornos mentais continua forte, e a ausência de formação para lidar com essas situações faz com que famílias tomem decisões que violam gravemente os direitos humanos, mesmo acreditando estar fazendo o “melhor”.
A Polícia Nacional garante que o adolescente será acompanhado por equipas multidisciplinares até que possa retornar, em segurança, ao convívio social, ainda sem previsão de reintegração à família.
O Instituto Nacional da Criança (INAC) foi notificado e poderá recomendar a retirada definitiva da guarda dos pais, dependendo da evolução do caso.
No entanto, enquanto isso, o caso de Calenga acende um alerta nacional. É preciso mais do que prisões: é urgente fortalecer o sistema de protecção da infância no país, com políticas públicas eficazes, descentralizadas e voltadas para a realidade de comunidades vulneráveis.
Se souber de alguma criança em situação de risco ou violação de direitos, denuncie de forma anónima. O silêncio também mata.