Grande Reportagem sobre a vida dos cidadãos no Cazenga e no Sambizanga
“O problema não é só a falta de água, é a ausência de esperança, o que vemos nas valas entupidas, nas casas sem luz, nos rostos dos jovens ociosos é o Estado que não chegou”, vozes das autoridades tradicionais do Cazenga e Sambizanga, em Luanda.
Em Angola, tem bairros onde o tempo parece ter parado, mas não por estagnação, parou de propósito, sufocado pela ausência de políticas públicas eficazes, paralisado pela inércia do poder e pela incapacidade de enfrentar a avalanche urbana que se avolumou nas últimas décadas, Cazenga e Sambizanga são dois desses lugares, este é o espelho do país real, profundo, onde os relatórios não chegam, e onde os discursos oficiais, tantas vezes, se dissolvem na poeira das estradas de terra batida.
A explosão populacional e o colapso urbano
O bairro do Cazenga foi projectado para albergar cerca de 2 mil pessoas, hoje, acomoda entre 4.500 a 8.000, em alguns casos, famílias inteiras dividem um único cómodo, a urbanização seguiu um ritmo natural, desgovernado, sem acompanhamento técnico, sem redes de saneamento, drenagem, água potável ou distribuição energética sustentável.
Esse inchaço populacional não é apenas um fenómeno demográfico: é um colapso urbano e social. O abastecimento de água é intermitente, precário, e na maioria das vezes inexistente. Muitos bairros consomem água salobra, captada de fontes não tratadas. “É assim que estamos a viver. Um dia tem água no chafariz, outro dia não tem nada. Quando tem, a fila começa às 3h da manhã”, relata uma jovem mãe, com o filho ao colo.
Nas escolas, faltam carteiras, professores e estruturas mínimas. Nos centros de saúde, falta até soro, e nas ruas, faltam empregos, oportunidades e futuro.
A juventude abandonada: da exclusão à delinquência
“Não temos trabalho, não temos curso, não temos saída. O que querem que a gente faça?”, pergunta um jovem de 19 anos, que já passou por três tentativas frustradas de ingresso num centro de formação profissional. A ausência de oportunidades transformou muitos jovens em soldados de uma guerra invisível contra a miséria. Não são marginais por escolha — são vítimas de um sistema que os condenou antes mesmo de tentarem resistir.
As chamadas “gangues juvenis” ou “bombatotas” são hoje uma consequência directa da ausência do Estado. São grupos que surgem por sobrevivência, por identidade, por força. São jovens sem acesso à escola, à alimentação regular, à cultura, ao emprego, à saúde mental. “Esses meninos estão a matar os próprios irmãos, porque nunca foram ensinados a valorizar a vida”, diz um líder comunitário.
A criminalidade deixou de ser apenas uma questão de segurança pública; é uma questão de justiça social.
A falência do modelo de formação profissional
Cazenga possui um centro de formação profissional, mas o paradoxo é doloroso, os jovens do próprio bairro não conseguem acesso. As vagas são ocupadas por estudantes vindos de outros municípios, com melhor nível educacional ou maior influência. “Aqui no bairro, a formação virou miragem, muitos nem sabem como se inscrever, outros são simplesmente ignorados”, relata uma jovem que tentou por duas vezes entrar num curso de costura.
A promessa de capacitação transformou-se num símbolo de exclusão.
A maioria dos jovens deseja trabalhar, querem aprender uma profissão. Desejam ser carpinteiros, alfaiates, marceneiros, electricistas, soldadores, desejam sair da invisibilidade, mas para isso, precisam ser vistos.
O esforço local e a limitação estrutural da nova administração
Desde a nova divisão político-administrativa, a administração municipal de Cazenga ganhou autonomia, uma nova administradora foi nomeada, e, apesar de ainda estar no início da gestão, com pouco mais de 100 dias, vem tentando abrir canais de diálogo, recentemente, reuniu-se com cerca de 270 jovens tidos como “bandidos” do bairro, a reunião foi simbólica e corajosa.
“Servimos pão, sumo, água, falámos com eles sem julgamento, dissemos que acreditávamos na mudança, e eles ouviram, eles responderam. Desde então, os conflitos diminuíram. Não é milagre, é humanidade”, explica um dos membros da delegação tradicional que participou do encontro.
Ainda assim, os recursos são escassos, a pressão é imensa, e a expectativa da população é enorme, “nnão basta ouvir, é preciso agir, é preciso canalizar verbas reais, projectos reais, políticas públicas consistentes”, reclama uma activista local.
Sambizanga, a esperança morna num bairro esquecido
O distrito urbano do Sambizanga segue uma trajectória semelhante. Nos últimos quatro anos, houve momentos de melhoria e de declínio. Hoje, a comunidade sente que está a “melhorar aos poucos”, mas com passos lentos demais. A iluminação pública, por exemplo, foi parcialmente restabelecida. “Antes, estávamos no escuro total. Agora já acenderam alguns postes. Mas ainda há muita rua apagada”, observa um morador.
A água, no entanto, continua a ser um drama. “Bebemos água de chafariz, nas casas não tem canalização, e quando falta energia, falta água também, quando falta água, as doenças chegam”, alerta uma enfermeira local.
A energia eléctrica, agravada pelo recente aumento de preços, virou artigo de luxo. “Não temos como pagar. A conta vem alta, mas nem temos luz, o meu frigorífico virou armário”, desabafa uma mãe de cinco filhos.
O apelo das comunidades, “queremos dignidade, não esmola”
As comunidades de Cazenga e Sambizanga não estão a pedir favores. Estão a pedir justiça. Estão a exigir que o Estado reconheça sua presença, sua história, suas necessidades. Querem políticas públicas, não apenas caridade. Querem saneamento, escolas técnicas, vias pavimentadas, postos de saúde dignos. Querem água potável nas torneiras, luz confiável, recolha de lixo. Querem viver com dignidade.
“Quando os jovens têm futuro, não têm tempo para o crime. Quando há formação, há mudança. Quando há atenção, há paz”, afirma, com firmeza, uma líder comunitária do Sambizanga.
Enquanto isso, o tempo passa. E as valas continuam abertas. As casas continuam escuras. Os chafarizes continuam secos, e os sonhos continuam suspensos, como um grito silencioso vindo dos bairros que ainda esperam ser incluídos no verdadeiro projecto de Nação.